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Estórias da Saga Baleeira nos Açores - Parte 3

João Monteiro – Antigo Baleeiro
Estórias da Saga Baleeira nos Açores
Por Manuel Cândido Martins

Fotos: Adiaspora.com
06 Novembro de 2010


 

Manuel Cândido Martins e João Monteiro

“Baleia à vista! Baleia à vista!”, brada o homem na vigia, enquanto o foguete estrela os céus que amantam o azul infindável do mar.
E lá vão os baleeiros, aqueles valorosos homens do mar, no frenesim da faina, correndo, correndo, em desvairada correria, até aos botes que bailam à borda de água...
Almejando preservar para a posteridade a memória baleeira das gentes da Ilha do Pico, a redacção do portal Adiaspora.com tem vindo a efectuar uma série de entrevistas junto dos antigos baleeiros da ilha do Pico que partiram e construíram o seu futuro em terras do Canadá. Através do depoimento de João Monteiro, o terceiro desta recolha, privamos mais intimamente com as vivências da baleação, numa época em que esta actividade constituía uma das principais fontes de sustento dos homens daquela ilha açoriana, e de suas famílias.
Manuel Cândido Martins, também ele picoense e contemporâneo de João Monteiro, conduz esta entrevista, na qual ambos viajam no tempo para as paragens insulares da sua mocidade.

Monteiro na companhia de Manuel Cândido Martins e José Ilídio Ferreira, director de Adiaspora.com

ADIASPORA.COM: Hoje, encontram-me como o Senhor João Monteiro, que baleou nas Lajes do Pico há alguns anos atrás. Iremos ter uma conversa relacionada com esse tempo da baleia, para ficarem registadas coisas que se vão perdendo com o passar dos anos. Senhor João Monteiro, quando iniciou a sua vida de baleeiro? Que idade tinha quando começou a balear?

JOÃO MONTEIRO: Tinha catorze anos de idade. Comecei por tirar a cédula, pois não se podia tirar antes dos catorze. Fui arriar à baleia, nas Lajes, com o João Luís e o Domingos Luís, o trancador. Arriei lá três ou quatro anos. Depois, fui com o meu pai para a Ilha das Flores. Lá, como eu ainda não tinha a carta de trancador, tiveram de a tirar a outro indivíduo, sob cujo nome eu então desempenhei essa função. Arriei lá como trancador dos dezoito aos vinte anos de idade. De seguida, vim para a tropa. Depois da tropa, tirei então a carta de trancador, pois não se pode arriar sem a carta. Seguidamente, arriei dois anos com o Francisquinho Barbeiro. Num ano, apanhámos dezoito baleias e noutro, vinte e uma. Sabe, lá ganhávamos só uma soldadinha. Soldada e meia! Depois resolvi ir balear para a Ilha Graciosa. O meu pai estava lá e o meu irmão. Estive a balear na Graciosa. Como sabe, era só de verão que se baleava. Depois voltei para o Pico. A seguir, fui para o Faial, onde baleei mais um ano. Depois regressei ao Pico novamente. Fui então para São Jorge até vir para aqui, para o Canadá. Em São Jorge, arriei como trancador.

ADIASPORA.COM: Acontece que nessas voltas todas, acabou por tirar a carta de trancador. Quando é que a tirou?

JM: Não se podia tirar a carta de trancador senão aos 21 anos de idade. Quando fui para as Flores, telefonaram para lá para tirar uma carta. Como eu ainda não tinha idade, acabei por ficar sem arriar como trancador algum tempo. Depois o Maurício, que era das Flores, lá tirou a carta a um rapazote. Já se sabe que ele tirava a carta a qualquer um, mas não a podia tirar para mim porque o delegado marítimo era muito recto nessas coisas. Depois, como já disse, ele acabou por tirar a carta a outro e eu fui arriar de trancador no Antónico II com a carta dele. Foi num ano em que apanhámos oito baleias. Depois andei a arriar em vários outros sítios. Arriei com o Sabina,em São Jorge. Andei a balear até vir para o Canadá, para onde emigrei aos 29 anos de idade. Fui trancador desde os 18 aos 28. Depois vim para aqui. E foi assim.

ADIASPORA.COM: Em que ano emigrou para o Canadá?

JM: Em 1959. Foi na altura em que abriu a imigração no Canadá para os sinistrados do Vulcão dos Capelinhos. Eram cento e poucos casais. Dei lá o meu nome e lá vim para aqui, eu e a minha mulher. Na altura, já tínhamos uma rapariguinha com seis anos. Vim para o Canadá e tenho estado aqui sempre, já há 51 anos.

ADIASPORA.COM: Mas voltando ao Mar dos Açores, que é isso que nos interessa, pedíamos agora que partilhasse connosco as suas aventuras nesses mares, quando andava a correr atrás das baleias. Saíam do porto das Lajes – pois estamo-nos a focar mais no porto das Lajes do Pico – quando o vigia atirava o foguete para o ar?

JM: Sim, pois naquele tempo não havia rádio, não havia nada! Era só foguetes. Punham uma bandeira acolá, ao pé do moinho, e de onde estivessem, iam todos a correr lá para baixo. Chegavam lá e arriavam os seus botezinhos. Os que arriavam primeiro agarravam as lanchas melhores e apanhavam as baleias. Os que vinham mais atrasados já agarravam a Lourdes e a Hermínia e, quando chegavam lá fora, já estava a festa feita!

ADIASPORA.COM: Mas se estavam todos juntos, em parceria, tinham que ganhar também uma parte do que os outros apanhavam, ou estes ficavam com tudo para si e os outros com nada?

JM: Não. Havia catorze botes nas Lajes. Aquilo era tudo junto. Primeiro, os da vila guerreavam com os da Ribeira do Meio, mas agora, por fim, os catorze botes estavam todos juntos, em parceria. Fossem por onde fosse, era tudo junto, as lanchas e os botes, e já não se espantavam uns aos outros. Primeiro, espantavam-se e pintavam o caneco! Mas agora, por fim, era tudo em parceria, tudo junto.

ADIASPORA.COM: As lanchas vieram já numa época mais tardia. Antes das lanchas, saíam a remos. Isto foi ainda no seu tempo?

JM: Foi antes. Quando peguei a arriar, já havia lanchas. Isso foi antes, no tempo dos meus avôs, quando não havia lanchas nenhumas. Faziam aqueles botezinhos. Cada companhia, com, por exemplo, 20 ou 30 sócios, tinha dois botezinhos e o seu vigiazinha, lá com aqueles panos, para fazer sinal. Depois iam a remos, coitados, até lá fora. Quando havia uma aragenzinha, iam de vela. Aquilo ajudava, mas quando não havia, iam de remos. Aquilo era, como o outro dizia, “pão de milho”! Quando comecei a arriar à baleia, já havia lanchas. Lanchas fracas: a Lourdes, a Hermínia, a Aliança e a Margarida. Mas já agora, por fim, havia a Cigana e a Rosa Maria. Essas eram lanchas grandes! Já faziam 13 ou 14 milhas. Coitados daqueles velhotes. Iam a remos para fora. Vinham de remos para terra quando não apanhavam nada. Quando apanhavam duas ou três baleiazinhas, era tudo rebocado a remos. Como chegariam a terra?

ADIASPORA.COM: Isso deveria ser um pouco difícil. Mas como é que as baleias estavam ali, à espera deles, uma vez que estas andam sempre no mar? A não ser que estivessem por ali, comendo ou brincando, para haver tempo dos baleeiros chegarem junto delas.

JM: Muitas vezes, coitados, chegavam tarde. Os baleeiros não estavam na Lagoa. Estavam nas terras e vinham a correr para baixo. Depois, saíam para o mar a remos. Muitas vezes, chegavam lá fora e já não as viam. Elas metiam-se para uma banda, metiam-se para a outra. Às vezes apanhavam. Naquele tempo, não havia lanchas, as baleias eram mais mansas e talvez não andassem muito para fora. Não iam para trinta ou quarenta milhas da costa como agora, por fim. Os baleeiros iam devagarinho e, coitados, muitas vezes já não as viam. Vinham para terra. Faziam fumos e lá vinham para terra sem apanharem nada, coitados.

ADIASPORA.COM: A comunicação era feita com fumos e lençóis. Como é que os baleeiros se regulavam quando o vigia ponha o lençol ou fazia fumo? Quais eram os sinais convencionais que viam nessas alturas em que andavam fora?

JM: Havia uma vigia na Queimada. Lembra-se? Saíamos do porto para fora. Punham os lençóis ali emparelhados e nós íamos por ali fora, sempre guiados por aqueles lençóis. Quando estes rodavam mais para uma banda, ajustavam-nos. Nós íamos por ali fora, ali sempre devagarinho. Naquele tempo, as lanchas faziam sete ou oito milhas, não mais do que as oito milhas. Nada! Orientávamo-nos por aqueles lençóis. Muitas vezes, chegávamos lá fora e olhávamos para terra. “Olha, olha! Tiraram o lençol!” E ficávamos à espera que eles os pusessem de novo. Lá punham aqueles lençóis, aqueles coitados! Vinham a pé mudá-los! Eram lençóis grandes. Para estender aquilo! Rodavam-nos e tudo mais! Mencionou os fumos. Quando as baleias saiam em direcção à terra, faziam fumos na vigia. Nos víamos e dizíamos, “Oh diacho! Está acolá fumo na vigia!” Elas saíam para terra, mas muitas vezes não era na vigia. Quando era mais altinho, já não víamos os fumos! Elas vinham para terra e estavam cá para mais dentro. Era assim...

ADIASPORA.COM: Não estavam, provavelmente, à espera da baleia, nem do foguete. Cada um ia para a sua vida e depois de ouvir o foguete, saía do lugar onde estavam para o porto, para os botes. Consta-se que, antigamente, principalmente na Calheta de Nesquim, lugar de muitos baleeiros, que as mulheres corriam com as suas comidas para o porto, para os barcos, para darem aos marinheiros. Nas Lajes do Pico, acontecia a mesma coisa?

JM: Às vezes, estávamos a trabalhar nas terras cá para cima e corríamos para baixo. Ainda era um bocadinho. Já estive na Silveira. Lembra-se da Silveira? Ainda era um pouco longe. Vínhamos a correr, a correr. Estavam as mulheres ali, no Caminho Novo – a minha mãe, naquele tempo - com um bolinho e um bocadinho de queijo. Nós vínhamos a correr e pegávamos naquilo e corríamos de lá para a vila, que fica a um quilómetro dali. A correr com o bolinho! Quando as mulheres não viam o sinal e não vinham, lá íamos sem nada. Era assim. Chegávamos lá fora e um dava um bocadinho de bolo, outro um bocadinho de queijo. Passávamos todos juntos ali, que aquilo era tudo uma família!

ADIASPORA.COM: Consta que havia a bordo dos barcos uma caixa a que chamavam keg, onde guardavam mantimentos. Que tipo de mantimento havia nesses kegs?

JM: Eram umas roscazinhas. Dentro dos kegs tinham aquilo. Os kegs estavam ali, mas nunca se abria. Os coriscos dos rapazes iam nadar para ali, mesmo junto dos botes, e muitas vezes abriam-nos e tiravam as bolachas. Os baleeiros chegavam lá fora, abriam os kegs e não havia bolachas nenhumas! Ficavam desanimados. Era pouca coisa, mas sempre dava para uma isca para o sustento de algum. Alguns iam para o mar de manhã e estavam até à noite, até tarde, antes de regressarem a terra.

ADIASPORA.COM: Em situações dessas, como conseguiam manter-se, porque remar exige um grande esforço, assim como o trancar de uma baleia, e havia grande azáfama dentro dos barcos? Como conseguiam manter-se sem comer?

JM: Muitas vezes, iam para o mar de noite e estavam lá até de manhã. Depois, de manhã, vinham para terra. Estavam ali, ocupados a lavar a lancha e noutros afazeres, quando arrebentava novamente a bomba. Iam logo de lá para a baleia, com a comidinha daquela noite, e estavam no mar toda a noite e todo o dia e, à noitinha, vinham para terra outra vez.

ADIASPORA.COM: A vida era difícil nesse tempo e claro, os baleeiros tinham de ir para o mar para poderem ganhar o pão de cada dia. Tinham de sair e tinham de estar sempre à alerta. Quando não havia baleia, tinham de se dedicar à terra para poderem ganhar alguns escudos para poderem compre alguma coisa nas mercearias. Quando não havia dinheiro, como compravam? Era a fiado?

JM: Eu, por mim, era assim: nós íamos para a baleia quando o mar estava manso. Quando não havia baleia, íamos para o mar à noite, para apanhar um cachupo para vender, para fazer um escudo. Quando o mar estava bravo, íamos para a terra plantar umas batatinhas, umas cenouras, umas coisinhas para se comer, umas batatinhas brancas e doces. Para se poder viver, tinha de ser assim. Com o tempo bom, era o mar, e com o tempo bravo, era a terra. Era assim que fazíamos.

ADIASPORA.COM: As soldadas que ganhavam nunca eram pagas nos dias ou nas semanas em que baleavam. Dizia-se que eram pagas quase no fim do ano. Como se asseguravam um ano à espera do dinheiro? Como viviam?

JM: Para mim, era assim: ia apanhar um peixinho para comer, para vender, fazer um escudo. Da baleia, por exemplo, quando arriava no remo do meio, era só uma soldadinha. Recebia-se no fim do ano, para ter um, dois, três, quatro, cinco contos. Naquele tempo, não era nada! Se estivéssemos à espera só daquilo, morreríamos à fome. Íamos trabalhar para o vapor também. O Edmundo fazia as contas no fim do ano. Muitos iam com a sua cadernetazinha lá e quando vinham a fazer as contas, já não tinham nada para receber. É só! E era assim que nós fazíamos, meu amigo!

ADIASPORA.COM: Era a vida dos picoenses e de muitos açorianos nesses tempos. Mas continuando com a caça da baleia, onde eram construídos os botes? Nas Lajes? Em Santo Amaro? Onde construíam esses botes?         

JM: Era tudo ali, nas Lajes. O Mestre Manuel e os irmãos tinham uma companhia que fazia botes. Outro era o Mestre Antoninho, de São Miguel, e o Clarenço. Estes tinham homens que faziam os botes. Naquele tempo, era só nas Lajes que faziam botes. Hoje, constrói-nos por toda a banda. Era o Manuel Francisco José, ou Mestre Manuel, como nós o chamávamos, que construía os botes todos ali, nas Lajes. Catorze botes que havia ali. Faziam para fora, para a Terceira, para São Miguel, para uma banda e para outra. 

ADIASPORA.COM: Consta-se que as designações que davam a certas partes do bote tiveram a sua origem na língua inglesa. Devem ter, talvez, derivado do tempo em que as baleeiras americanas aportavam por ali e deram a ideia dos botes baleeiros. Principalmente na Calheta de Nesquim, para onde o Capitão Anselmo, que tinha andado à baleia na América, trouxe ou construiu os primeiros botes. Pode dizer-nos algo sobre este assunto?      

JM: Não me lembro nada disso. Depois, foi o Mestre Manuel que fazia os botes por ali, mas desses tempos, não me lembro de nada. Os nomes dos componentes dos botes eram: o mastro, o bombo, o pico, o guindaste...

ADIASPORA.COM: ... e o que lhe chamavam de loggerhead...

JM:  ... que era de embrulhar a linha. Por exemplo, quando trancavam, quando a linha ia para baixo, para ir mais devagar, passavam-na ao cepo. Às vezes, queimava o cepo. Fazia lume acolá!

ADIASPORA.COM: O que era o tal loggerhead?

JM: Era o cepo cá atrás. Aqueles nomes eram todos provenientes dos americanos que passaram por ali, mesmo o arpão. Este, naquele tempo, era uma coisa feia, grossa, mas agora, por fim, já tinham uns arpõezinhos finos.

ADIASPORA.COM: As lanchas Hermínia e Lourdes foram as primeiras a aparecerem nas Lajes, ou houve outras antes destas?

JM: Acho que a Margarida e a Aliança foram das primeiras. Não tenho bem a certeza. Desde quando me lembro, já havia estas lanchas todas: a Hermínia, a Lourdes, a Margarida e a Aliança. Depois, mais tarde, apareceu a Cigana, que foi o Mestre Costa que a construiu, e a Rosa Maria, que foi o Mestre Manuel que a construiu cá, nas Lajes. Nesse tempo, já andavam bem. Estas lanchas faziam treze milhas e já se podia arriar bem à baleia. Ao sairmos dali, do porto, amarrava-se dois, três botes em cada lancha e nós podíamos nos deitar, estar ali descansadamente, que os botes iam de reboque por lá fora! Não precisávamos de remar, não precisávamos de fazer nada! Levavam-te de reboque até ao alto -mar. Não se podia largar os botes muito perto das baleias, pois estas sentiam a lancha. Largavam-nos a uma milha, ou milha e tal, delas. Depois, se houvesse uma aragem, já levam o mastro no ar, se não, lá íamos todos a remar ali. Chegávamos perto delas. Sabe, o trancador ia adiante de todos. Íamos remando, remando e quando chegávamos perto da baleia, o oficial dizia, “Levanta-te!” Puxávamos o remo e metíamo-lo na borda do bote, que é para o remo não ganhar água e vento, se este fosse muito, para podermos trancá-las. Por vezes, cansadinhos, mal podíamos levantar-nos de estafados. Às vezes, iam dois botes carregados de homens. Um queria chegar primeiro. Outro queria chegar primeiro. Guerreavam, mas não já por fim. Sabe, a baleia só se pode trancar pela cabeça ou pelo rabo. Pelo lado, ela vê. Portanto, se saíssemos de vela, tínhamos de a tomar pela cabeça ou a apanhar pelo rabo. E quando eram botes guerreados, não havia banda por onde! Era o que mais podia, para espantar os outros até! Às vezes, era mesmo só para espantar!

ADIASPORA.COM: Hoje, as Lajes do Pico tem um porto de abrigo, mas este é já recente. Naqueles tempos, aquilo era tudo mar aberto. Quando havia mau tempo e estavam fora, no mar, como entravam na baía, porque havia muitas baixas, muita pedra por ali, que dificultavam a entrada?

JM: Uma vez, fui pra as Ribeiras. Já houve muitos que foram para São João, pois chegavam às Lajes e havia reveses. Às vezes, havia mar de norte, mar de leste, e havia arrebóis ali. Eu já fui a nado para as Ribeiras. E também de uma lancha de pesca! Fui, uma vez, também do barquinho Flamingo para as Ribeiras, porque estava o mar bravo e não se podia entrar na baía das Lajes. Revirei um barco lá. Fui para as Lajes, havia arrebóis e não deveria ter entrado na baía. Entrei, eu e o meu pai e o meu tio Domingos. Chegámos à boca das pedras, veio uma vaga do mar e levou-nos de vez para o fundo! Ora, ficamos todos a nadar ali, em cima do mar. Estive a ver se nadava para terra e o meu pai também, mas o meu tio Domingos, coitado, já tinha revirado duas vezes. De umas das vezes que revirou, foi de noite. Agarrou-se à lancha. O outro desgraçado foi o José Bento. O meu tio esteve quase a morrer por aqueles arrebóis adentro mas, dessa vez, agarrou-se à lancha e ficou bem. Desta vez, ele tentou fazer o mesmo, mas a lancha foi andando, foi andando, chegou à boca das pedras e havia muitos arrebóis. Ele e o meu pai, que era um homem que pesava cem quilos, quase que se afogaram. O mar foi tomando conta deles e eles já não podiam mais. Eu era uma criança. Tinha 18 anos e não media o perigo. Comecei a nadar para terra. Chegou-se cá dentro e o meu pai vinha a nadar perto de mim, enquanto o meu tio Domingos ainda se encontrava lá fora. Vim nadando, nadando e veio um vaguinha de mar e põe-me em cima do meu pai. “ Não! Chega-te mais para lá que estou já afrontado. Tenho que ver!” Ele, nessa altura, foi com um pé ao fundo, com o sapato, e este engatou no fundo ou em qualquer coisa. Ele puxou, puxou e o sapato ficou lá. Chegou à beira de água, quando pegaram nele – depois, nessa altura, foi uma lanchazinha com dois homens: o Marino e um filho de Manuel Zezinho – e trazia só um sapato! Mas já viu? Eles eram de uma certa idade, uns quarenta e tal anos cada um talvez, perto de cinquenta, e eu tinha dezoito. Claro, era um rapaz e tratei de nadar e de me por a salvo. Até juntei a caixa que era de levar comida e as roupas que ficaram por cima do mar. Juntei isso tudo e vim nadando para terra. Estava quase a chegar ao caneiro, quase a saltar para o Caneiro, quando o barco chegou, pegou em nós, e lá viemos. Depois, a lancha foi pelo caneiro adentro. Era a lancha do João do Vintém. Foi pelo caneiro adentro e olhe, nem se arrombou nem nada! Ficou tudo bem, mas passámos um mau bocado ali!

ADIASPORA.COM: Era assim a vida dos baleeiros e dos pescadores. Ainda há muito para contar naquele porto das Lajes! Mas retornando à questão da baleação, que foi a sua principal actividade profissional nesses tempos, quando andavam fora, no mar, em busca das baleias, notavam que havia alguma coisa que os impedisse de chegarem a elas, ou estavam sempre bem orientados para darem com o sítio onde estavam?

JM: Muitas vezes, remavam, remavam e quando chegavam perto de baleia, ela submergia. Num cardume, as baleias estão todas juntas à superfície, mas uma baleia grande está no mar e, às vezes, vem à tona de água já longe. Nem sequer a viam! A vigia é que via e colocava lá os panos para indicar o sítio onde ela se encontrava, e depois, os baleeiros remavam até lá. Mas muitas vezes, elas saíam à superfície longe. A baleia grande aguenta-se uma hora debaixo de água. Já vi baleias que se aguentavam uma hora e um quarto! A que é de cardume está sempre por cima do mar. Vai abaixo durante um quarto de hora – nem sequer meia hora – e vem para cima outra vez. As que nós mais gostávamos eram as baleias de cardume, pois davam para todos. Quando era uma baleia grande, só dava para um. Às vezes, tínhamos catorze botes e todos apanhavam, uns de uma banda, outros de

Ver Estórias da Saga Baleeira nos Açores - Parte 2

outra. Já vi, na baía das Ribeiras, apanharem trinta e uma! Estavam todos os botes das Lajes do Pico e até do Cais do Pico estavam ali! Para contar isto tudo é preciso muita baleia!

ADIASPORA.COM: Diz-se que alguns baleeiros, quando a baleia mergulhava, orientavam-se pelo rabo. Não sei o que a baleia fazia que lhes permitia saber onde ela emergiria novamente à superfície. Que orientação era essa?

JM: A baleia grande vira o rabo muito descansadamente. A de cardume, muitas vezes, não vira o rabo, mas a baleia grande vai andando e, a determinada altura, vira-o. Bate só com uma quinazinha na água e não entra logo à primeira. Então ela roda, para depois mergulhar. Havia baleeiros, como o José Gatinho e aquele Mole Fula, do Cais do Pico, que eram muito antigos e compreendiam isso. Os outros também acabaram por apreender. Agora por fim, já era tudo de conhecido mas, naquele tempo, só se falava naqueles baleeiros. Às vezes, iam tocadas como o lume e viravam ali o rabo num instante!

ADIASPORA.COM: Mas isso era uma orientação, porque sabiam aproximadamente quanto tempo ela permaneceria de baixo de água e onde voltaria à superfície.

JM: Às vezes! Nem todas as vezes dava certo! Enganavam-se muitas vezes. As baleias faziam aquilo com o rabo e rodavam para trás e, muitas vezes, os baleeiros não acertavam. Estive a balear no Capelo (na Ilha do Faial), onde cada um, à sua vez, ia levar a baleia à fábrica. Certa vez, o bote ia atrás, rebocado pela lancha. Alguns ficaram no Capelo, enquanto os outros foram lá para fora balear. Fomos atrás de um cachalote. Fomos para fora já tarde. A baleia estava melindrada. Já lhe tinham atirado duas vezes e estava muito espantada. Fomos para o mar e o Jaime Cabrito, o Mário, estava lá e viu-a. Vinha como o lume, embravecida, espantada, pois já tinha sido picada duas vezes com o arpão. E vi-a tocada como o lume, a vir em direcção à terra. E o Mário Cabrito disse, “Olha, vocês larguem o cabo e só põem os remos. Não remam, para a baleia não sentir nada!”, pois ela estava espantada que só visto! Nós vemo-la ali e pusemos os remos. Pus o meu remo no seu lugar e peguei logo no arpão. Fui direitinho, chegando-me à baleia. Ela lançou-se para fora de água e dei-lhe com o arpão no pescoço. Demos duas ou três lançadas e ela ficou ali direitinha, a flutuar em cima do mar. Nem se mexeu para banda nenhuma! Depois, fizemos um buraco nela - pois fazíamos um buraco - para a rebocar para terra. Os outros vieram de fora e disseram, “ Oh, a baleia vai ali, rebocada! Vai ali, para terra!” Não sabiam!

ADIASPORA.COM: Por vezes, passavam-se coisas inesperadas, mas era a vida do baleeiro, a vida do mar! Há uma outra questão: os baleeiros tinham devoção à Senhora de Lourdes. Antigamente, havia a Festa da Senhora de Lourdes e a festa dos baleeiros. Hoje, falam na Festa dos Baleeiros, mas e a Senhora de Lourdes figura já noutro plano. Será que já não têm aquela fé na Senhora de Lourdes como tinham? Também hoje já não há baleação. Já não pescam a baleia, mas continuam a realizar a Semana Baleeira. Entretanto, veio para aqui, para o Canadá, e provavelmente já não está a par disso. Contudo, tem alguma coisa que me possa dizer sobre isso?

JM: Nós, quando remávamos para a baleia, com a vontade de apanhar, dizíamos, “Um bidão para a Nossa Senhora de Lourdes. Outros dois bidões...” Dávamos muito azeite à Senhora de Lourdes. Quando chegava ali, à Festa de Lourdes, o azeite era vendido, mas já sabiam quantos bidões tinham para a Senhora de Lourdes. Vendiam-no e davam o dinheiro à Senhora de Lourdes. Aquela festa fazia dinheiro com os baleeiros. Pouco dinheiro era da própria festa. Muitos bidões davam os baleeiros! Agora, não há baleia, não dão azeite, e já não se fala na Senhora de Lourdes. Era assim! Muita força de bidões que nós dávamos para a Festa de Lourdes!

ADIASPORA.COM: Lembra-se ainda – claro que deve lembrar-se – do Senhor José Rocha, que tinha uma mercearia perto das casas dos botes baleeiros?

JM: Sim, sim. Por vezes, vínhamos do mar, com friozinho. Paravam a lancha e íamos lá tomar um calicezinho de aguardente para aquecer, senão morríamos gelados!

ADIASPORA.COM: Mencionei este assunto porque me lembro de ver os baleeiros, quando chegavam a terra. Iam todos para lá, para matar o bicho, como se costumava dizer!

JM: Coitados, chegavam ali gelados! Naquele tempo, era meio escudo um copinho de aguardente. Iam ali, não todos, mas alguns, e bebiam o seu copinho de aguardente. Depois, iam lavar a lancha, vender o seu peixinho. O peixe, naquele tempo, era o dízimo. Tiravam um de nove para a Guarda Fiscal. Tudo que se apanhava era tudo para a Guarda Fiscal! De nove, um. De nove, um. De nove, um. Antes de eu emigrar, íamos às toninhas e apanhávamos muitas, dez, sete, oito... Naquele tempo, - não se pode dizer, senão vamos para a cadeia! – apanhavam aquelas toninhas. Trancavam-nas e a vigésima toninha era para a Nossa Senhora. Podia ser grande, podia ser pequenina, era sempre para a Nossa Senhora. Muitas vezes, hesitavam quando era pequena, pois queriam dar uma grande, mas era aquela, a vigésima, que era para a Nossa Senhora! Pouco tempo antes de vir para aqui, apanhei cento e tal, e ainda prestei essas contas a Nossa Senhora! Não podíamos ir. Era proibido. Nós saíamos num barquinho ali, do porto. Já por fim, era um barquinho a motor. Nós íamos no barquinho a motor, a vigiar, a vigiar, e assim que víamos os bichos, íamos direitos a eles. Quase sempre que se iam às toninhas, trancava-se duas, três, sete, oito. Já apanhei dezoito! E vendia-se aquilo tudo! Chegava-se à beirinha de água, cortava-se às postinhas, enfiava-se nuns enfiozinhos e vendia-se.

ADIASPORA.COM: Mas isso era no tempo em que conhecíamos esses animais por toninhas. Sabíamos que havia golfinhos, mas não julgávamos que o golfinho era a toninha. Pensávamos que a toninha era uma coisa e o golfinho, outra. E afinal, era o mesmo animal e aí já tiveram mais receio. Principiaram a ver os golfinhos e as habilidades que tinham e havia receio até de comer a carne que apanhavam...

JM: Apesar de ser muito proibido, hoje ainda apanham toninhas, algumas. Vendem e comem. De primeiro, era uma coisa aberta. Era a vida daquela gente e faziam aquilo. Os antigos – não havia barcos a motor naquele tempo ainda – caminhavam ali, pela uma, duas ou três da manhã, e iam de vela por ali fora, pois naquele tempo não havia vigias, não havia nada. Iam ali a sete, oito milhas para as descobrir. Sabe, aquelas toninhas trazem sempre bichos em cima delas: as cagarras. Iam vigiando e viam aquilo. Iam junto das toninhas e apanhavam três, quatro, cinco, seis e vinham para terra e vendiam-nas. Naquele tempo, podia vender-se. Hoje, é cadeia logo!

ADIASPORA.COM: Eram arpoadas da mesma forma que as baleias, ou não? Eram pescadas ou arpoadas?

JM: Usávamos os nossos arpõezinhos, que eram menores do que o arpão da baleia. Dois homens iam para cima do leito da proa e um ficava ali. As toninhas vinham de longe brincar com o barco. Vinham, vinham, vinham e chegavam ali, brincavam em redor do barco e estavam por ali. Às vezes, trancava-se duas de uma só vez e noutras, cada um trancava a sua. Iam quatro, cinco homens no barco. Metiam as toninhas dentro do barco e lá iam outra vez. Chegavam ao cardume e apanhavam mais uma ou duas. Muitas vezes, chegavam a terra com elas vivas. Às vezes, havia uma mãe e a filhota. Nesse caso, nunca apanhávamos a mãe, porque senão a filha ia-se embora. Apanhávamos a filha, porque assim a mãe voltava e apanhávamos a filha e a mãe. Era assim.

ADIASPORA.COM: Estávamos na pesca das baleias e chegamos à pesca das toninhas...

JM: O tubarão...

ADIASPORA.COM: E agora está a falar em tubarões. O que é que aconteceu com os tubarões?

JM: Olhe, estava na fábrica da baleia a trabalhar e apareceu um raio a mergulhar na água. Eu, o Flores, o Malabatata, e um rapazinho de oito anos, do Lourenço pegamos na lancha e fomos por ali fora. Levámos um bidão, pois punham um bidão, amarravam um cabo e trancavam o tubarão e botavam o bidão ao mar. Mas nessa ocasião não deu, pois éramos novos e não tínhamos experiência. O tubarão estava lá. Nós íamos amarrados à bóia e o bicho veio com a cabeça assim direito a nós. Ora, era tão grande e cumprido que ficava atrás e adiante da lancha, uma lancha de dezoito pés! Nós lá o trancámos e botámos o bidão ao mar. Devíamos o ter deixado ficar no bidão, que ele agarrasse o bidão, pois diz-se que um bidão aguenta uma tonelada e tal. Mas não! Fomos agarrar o bidão e ele veio com a cabeça para cima e botou a boca à quilha. Ora, as tábuas de um barco são finas, mas a quilha ainda é grossa. O tubarão levou aquilo tudo a direito. Levantou a lancha no ar e depois caiu na água. Ficamos rasos de água ali, dentro da lancha. Eu trazia uma soeira vestida, pois tinha acabado de chegar de casa, e tinha peanuts na algibeira. Lembrei-me de tapar o buraco com a soeira, despi-a e fui tentar tapá-lo. Mas o buraco era grande. A soeira foi-se embora logo pelo buraco fora, e ficaram os amendoins a flutuar por cima do mar! O tubarão continuou a andar por ali, o maldito. Não nos deixava da mão! Rasgou o arpão e foi-se embora e nós ficamos ali, dentro da lancha, a lancha com um buraco deste tamanho! A lancha Espartel estava na lagoa, pois o João Abraão e o Manuel Chocalhão tinham acabado de chegar da baleia. A Espartel era uma lancha valente e, naquela altura, estava, talvez, a uma milha de nós. Oh rapaz! A lancha vinha a toda a força! Não tinha mais força para dar! Chegou ali, pegou em nós e rebocou a nossa lancha para terra, pois esta pertencia à fábrica. Ora, ficamos todos ali, todos a tremer ainda. Foi um susto muito grande! Aquilo é um peixe feroz do mar. Aquele peixe ainda não é muito mau se o deixarem da mão, mas se o perseguirem e pisarem, é muito perigoso! Vi ontem, na América, um tubarão que comeu uma mulherzinha (referindo-se a uma tele-reportagem). Depois veio um navio, tratou do assunto e apanhou-o. O tubarão é um bicho feroz! É dos mais ferozes do mar! Falam da baleia, mas a baleia é um peixe santo! Os baleeiros andavam por ali e metiam-se por ela adentro e tudo isso! Nós, às vezes, metíamos a lança nela e ela lutava. Então, espetávamos a lança como se faz aos porcos, e ela permanecia ali, a flutuar na água. É um bicho manso! Ah, meu Deus, esta vida contada dava romances!

ADIASPORA.COM: Quando vinham com as baleias, antes da fábrica se ter instalado nas Lajes, estas eram conduzidas para a rampa. Como traziam as baleias pela rampa fora? Eram rebocadas? Eram

Soeira– Casaco de malha. Coloquialismo utilizado nos Açores e na Madeira que deriva da palavra inglesa “sweater”.

Peanuts – Amendoins em inglês

içadas? Era com um moitão ou uma corda? Que equipamento utilizavam para trazer a baleia para cima?

JM: Punham-nas no Caneiro. Não era na rampa, mas no Caneiro lá fora. Tinham uns cabrestantes com paus para andar de roda. Conforme ia embrulhando o cabo, ia puxando baleia para cima. Por vezes, para não terem aquele trabalho, esperavam que a maré esvaziasse e elas ficarem em seco. Mas quando tinham de a rebocar para cima, era com um cabrestante. Faziam um furo na cabeça ou no rabo e punham um cabo, um painete de verga, um cabrestante e uma mão cheia de paus com uma mão cheia de gente a andar de roda. Aquilo embrulhava o cabo e içava-a para cima. Mas era de penar, por exemplo, quando era uma baleia grande, para puxá-la naqueles tempos! Às vezes, metidos na água, a desmanchá-las metidos na água! Apanhei pouco tempo disso porque a fábrica veio logo, mas para os nossos antigos, era assim. Penavam! Estavam ali a derreter baleia metidos na água até à cintura. Aparecia baleia e lá iam, alagadinhos, e estavam todo o dia! Quando era de verão, ainda a roupa enxugava, mas de inverno era mau!

ADIASPORA.COM: Para desmanchar as baleias, tinham umas lâminas com uns cabos. Como chamavam isso?

JM: Chupeiro. Era um chupeiro de ferro metido num cabo. Aquilo cortava muito bem e estava sempre amolado. Iam esfolando e o cabrestante ia puxando baleia. Nós cortávamos e íamos tirando aquelas tiras que depois iam para cima, para o sítio das caldeiras, onde eram desfeitas em pieces e metidas nos caldeiros. Os caldeiros tinham lenha por baixo e estavam sempre a ferver. Botavam aquilo lá dentro e aquilo estava ali um grande bocado. Uma baleia grande tem vinte alguidares de líquido só na cabeça. Tem mais azeite na cabeça do que no corpo todo! Existe ali um depósito de azeite (alusão ao órgão produtor de espermacete localizado na parte superior frontal do cachalote). Por vezes, tínhamos de arregaçar as mangas para podermos entrar lá para dentro, para cortar aquela substância. Aquilo é como queijo. Uma baleia grande dava, às vezes, cinquenta bidões, dos quais trinta era da cabeça e vinte do corpo. Tinha mais na cabeça do que no corpo, isto é, uma baleia grande de sessenta ou setenta toneladas. A baleia maior que vi no nosso porto tinha vinte e um metros de comprimento. Foi aquele Ferreira que a trancou. Este Ferreira que estava lá, nas Lajes, era um irmão do Gilberto, da Madalena, que andava lá nas lanchas. Vinte e um metros que ela media! Nem pôde entrar ali, no Caneiro! Tiveram de a deixar lá fora até à maré cheia, para ela depois entrar.

ADIASPORA.COM: E esses arcaboiços, o que faziam a eles? Lembro-me que os punham no mar, para longe, mas as marés ou os ventos traziam-nos para as baías e ficavam por ali a deitar mau cheiro.

JM: Sabe, naquele tempo, era só o toucinho que tiravam, o azeite e umas postas de carne, as quais salgavam para engodo para os sargos e outros, para deitar aos porcos. Salgado, aquilo era muito bom. O resto ia tudo para o mar. As lanchas chegavam ali e faziam um buraco no arcaboiço, para o depois o rebocar. Não iam muito para fora, porque gastariam muita gasolina. Ora, a maré vinha para terra e encalhava aquilo tudo ali. Davam um fedor que era uma coisa desgraçada! Mas tinha de ser assim! E o âmbar! Nunca ouviu falar do âmbar? (âmbar gris, uma secreção da baleia utilizada na composição de perfumes)

ADIASPORA.COM: Sim, mas não sei bem qual era a finalidade do âmbar.

JM: Oh, aquilo deixava dinheiro! Havia lá indivíduos que ficaram remediados daquilo! Souberam que a baleia tinha aquela substância! O âmbar é o excremento da baleia. Fica empedernido dentro dela e cria umas bolas de âmbar. Aquilo é quase como o oiro! Era caríssimo! Uns indivíduos souberam daquilo, taparam o rabo das baleias com verga e combinaram com os da lancha e eles foram botá-las baixas. Daí um instante elas voltaram, para o Castelete. Foram lá dois indivíduos e tiraram uma mão cheia de âmbar delas.

ADIASPORA.COM: Isso não era do conhecimento de todos?

JM: Não! Aqueles amigos queriam-no só para si, aqueles que iam buscá-lo! Não!

ADIASPORA.COM: Mas como é que eles descobriram isso?

JM: Descobriram porque tiravam aquelas partes, depois de tirar o toucinho, aquelas gorduras e aquilo tudo. Os indivíduos, ao tirarem as gorduras, desconfiaram. Meteram um espeto pelo rabo da baleia adentro para saber. O âmbar é uma pedra dura, uma coisa que fica empedernido dentro da baleia. Os indivíduos foram e fizeram aquilo bem feito. Dois indivíduos lá!

ADIASPORA.COM: O âmbar não foi encontrado por acaso. Alguém tinha conhecimento que isso existia na baleia...

JM: Uma vez, estávamos na Lagoa a tirar os dentes, pois estes pertenciam ao bote que apanhava a baleia. De primeiro, os dentes não valiam nada, mas já agora, por fim, já valiam. Nós estávamos lá, um no bote e os outros à volta, todos à espera da baleia, e veio uma bola daquelas rente ao bote. O Leonel disse, “Olha o que está aqui! Mete isso devagarinho, para depois não verem lá dentro.” Lá meteram a bola dentro do bote. Sabe, este foi vendê-la a um homem importante. O homem importante ficou com uma mão cheia de dinheiro, pois vendeu-a outro. O que quero dizer com isso é que, antes de eu vir para aqui, para o Canadá, aquela bola de âmbar sempre me deu para um relógio! Cento e tal escudos para sete pessoas! Mas o que a comprou, ganhou uma mão cheia de dinheiro e o outro que a vendeu para Lisboa também! Diziam que era como o oiro!

ADIASPORA.COM: É pesado?

JM: É pesado, sim. Uma bola devia ter quê? Uns dois quilos.

ADIASPORA.COM: Isso então é o chamado âmbar?

JM: Sim. Quando a baleia está perto de morrer, ela bota aquilo fora, aquela coisa grossa, aquelas postas de dentro. Estão perto de morrer, coitadas, e trincam a venta e botam aquele sangue pela venta fora, assim como bocados de lula de dentro. As agonias da morte. Quando estão perto da morte, levantam a cabeça e vão com ela no ar para morrer, coitadas, e sente-se ranger dentro.

ADIASPORA.COM: Quantos dentes têm as baleias?

JM: São quase como nós: dezoito de cima e dezoito de baixo. Se havia lá dentes! Ainda no ano passado, um indivíduo vendeu um dente de baleia por 800 euros. Hoje, os dentes dão um pouco, mas não dão muito. Houve indivíduos que os tinham de grande valor. Primeiro, na nossa lagoa, andávamos naquele fundo e ninguém fazia caso disso. Agora, por fim, já até para os não roubarem, serravam o carro e arrumavam-no.

ADIASPORA.COM: Isso foi no tempo em que os baleeiros tomavam conta das baleias, derretiam-nas, etc., mas depois da vinda da SIBIL, a fábrica de aproveitamento e derivados da baleia, eles é que recolhiam as baleias. Tinham conhecimento disso? O que faziam com o âmbar e os dentes?

JM: Pegavam naquilo tudo e assapavam-no aqueles senhores! Os gerentes e aquela gente toda é que assapavam aquilo tudo! Ficava tudo para eles! Depois de existir a fábrica, ninguém agarrava mais os dentes, nem mais nada! Consta-se que quando um gerente lá – não sei o nome dele – morreu, tinha uma barrica, daquelas de cimento, em casa arrumada. Também, depois de ele morrer, foram lá de noite e levaram a barrica! Foi uma coisa bem-feita!

ADIASPORA.COM: Não me vai dizer que havia uma máfia nessa brincadeira toda!

JM: Todo o mundo gosta de agarrar coisas para si! Eram os gerentes da companhia que manobravam aquilo. Faziam as contas da baleia, faziam aquilo tudo. Davam-nos o que queriam! Era assim isto tudo, meu filho!

ADIASPORA.COM: Senhor João, vamos terminar aqui a nossa palestra, porque as baleias já fugiram para longe, e agora estamos embrenhados num modo de vida já não relacionado directamente com a baleia. Quero agradecer a sua presença, por ter-se deslocado até nós, para prestar este seu valiosíssimo depoimento. Em nome do portal Adiaspora.com, o nosso muito obrigado.

Pieces – bocados em inglês

Nota: Âmbar gris ou âmbar cinzento é uma secreção biliar encontrada no aparelho digestivo do cachalote. O que origina a formação do âmbar no aparelho digestivo deste cetáceo ainda é, em larga medida, desconhecido, mas pensa-se que a secreção auxilia no processamento de substâncias indigestíveis e cortantes, tais como os bucais de polvos e lulas, que poderiam ficar alojadas no intestino. Ao envolver tais substâncias, evita a perfuração do intestino quando o cetáceo é submetido a grandes pressões advenientes do mergulho e facilita a expulsão das fezes.

Carro – Os maxilares da baleia.

 

Adiaspora.com presenteou o antigo baleeiro,
João Monteiro, com um certificado de reconhecimento
pela sua participação na saga baleeira do Açores.

 

 

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